BRASIL EM PORTUGUES

Os desafios das mulheres na aviação brasileira

“No Brasil, aos 17 anos, você não pode dirigir um carro, mas você pode pilotar um avião ou helicóptero. Foi isso que meu pai me disse quando eu pedi para tirar carteira de motorista”, diz a comandante Clarissa Canedo. “Eu tinha 15 anos quando vi um avião pela primeira vez no aeroporto de Curitiba. Foi ali que pensei: quero ser piloto. Só não sabia ainda o quanto essa vontade iria me custar”, conta a copilota Tatiane Martins. “Em um dos meus primeiros voos na aviação comercial, após uma longa e custosa trajetória, fiz meu discurso de boas vindas feliz. Um passageiro se levantou e pediu para desembarcar. Ele não queria voar com uma mulher”, afirma a comandante Paula Babinski.

A história destas três mulheres carrega particularidades, mas têm em comum o mesmo desafio: tornar-se pilota no competitivo e, principalmente, masculino mundo da aviação brasileira. Clarissa, Tatiane e Paula contaram ter sido as únicas em suas respectivas turmas de seus cursos de piloto. O caminho de cada uma foi diferente. Clarissa achava que só “era piloto quem era filho de um”; Tatiane formou-se comissária e “economizou por dez anos para bancar os cursos de instrução de voo”; e Paula enfrentou o descontentamento dentro de casa. “Minha mãe não queria que eu largasse o curso de administração e dizia que não criou filha para ser motorista dos outros.” Já formada, Paula ouviu de um colega na comunicação com o controle aéreo: «vai pilotar fogão”.

Desafio comum a todo comandante – homem ou mulher – é bancar centenas de horas de voo de experiência que são requisito em companhias aéreas. Há quem venda o carro e pegue empréstimos, como Paula. Ou, levante o montante trabalhando com táxi aéreo, como fez Clarissa. Também há quem persista, com paciência e economias, como Tatiane. “Em um período de formação, voava só cinco horas por mês, apenas para continuar buscando meu sonho”. No aeroclube de Bauru, em São Paulo, o custo de uma hora de voo atualmente custa R$ 500 em média. Uma vez conquistado o total de horas, é preciso aguardar a convocação para seleção nas empresas – um processo que depende da demanda do mercado e das próprias aéreas. A comandante Paula afirma ter “perdido cinco anos de sua carreira” porque, quando se formou, o mercado estava cheio de egressos da Varig, que acabara de fechar as portas.

Quando as empresas abrem o recrutamento, a competição é predominantemente masculina. Em 2017, segundo a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), existiam 370 licenças ativas de pilotas no país contra 13 mil de pilotos. Clarissa, Tatiane e Paula fazem parte desta minoria e hoje trabalham na Avianca. Em 2017, por iniciativa do presidente Frederico Pedreira, a companhia aérea lançou um programa para promover a capacitação e incentivo à carreira de mulheres pilotas. Em entrevista a Época NEGÓCIOS, Pedreira afirmou que o programa foi desenhado após ele perceber que as mulheres representavam 2% do quadro de comandantes e copilotos. A “solução óbvia” era contratar mulheres, mas elas não existiam em grande número no mercado. Era preciso formá-las e a Avianca criou um programa específico de capacitação – uma ação que enfrentou resistência interna, diz Pedreira.

Da porta para fora, a Avianca contatou a Anac para divulgar vagas e foi até aeroclubes, escolas e faculdades para recrutar pilotas. Em paralelo, diminuiu o número de horas voo necessárias como pré-requisito. As mulheres podem se inscrever com 300 horas voo – e não 500 como é o padrão da companhia – e completar o restante em simuladores. “Há questões culturais e históricas que distanciam a mulher da aviação, mas, acima de tudo, a formação de um piloto é bastante cara e demorada. E fica mais difícil para as mulheres que, em geral e infelizmente, ganham menos e precisam lidar com a dupla jornada”, diz Pedreira. Antes do programa, a Avianca afirma que apenas 4,8% do total de currículos recebidos pela empresa para a função de piloto eram de mulheres. Em julho deste ano, houve uma formatura de 16 mulheres – em uma turma que não contou com nenhum homem.

Em um ano, o programa aumentou em 3% o número de tripulantes técnicos mulheres e a meta da empresa é que, nas próximas formaturas de pilotos, ao menos 30% sejam mulheres. Como parte do programa Donas do Ar, Tatiane e Paula hoje compartilham a experiência como pilota em escolas e ONGs do Brasil. “Quando nascemos, recebemos um envelope básico do que é profissão para mulheres e do que é para homens. Os meninos sonham cedo em ser bombeiro, astronauta, piloto, e as meninas não têm essa mesma ousadia. O que falta é saber que elas têm essa possibilidade”, diz Paula. No dia a dia, as três pilotas comentam que é comum as crianças olharem com surpresa e espanto para elas dentro dos aeroportos. “Elas gritam: nossa, pai, olha, é uma moça pilotando”, conta Tatiane. “É estranho porque já faz tanto tempo que nós pilotamos e as pessoas ainda se surpreendem.”

Em companhias aéreas brasileiras, o número de mulheres no comando de aviões é baixo. A Azul tem 53 mulheres, entre comandantes e copilotos, para um total de 1.657 pilotos homens. Na Latam, há 30 mulheres pilotas – sendo 8 comandantes – dentre um total de 2.008. Na Gol, são 30 mulheres pilotas – sendo 6 comandantes.

No comando de um Airbus 320, Paula diz que é comum conversar com mulheres nas torres de controle aéreo, mas ainda é raro encontrar uma voz feminina na comunicação entre pilotos. No mês passado, após quase uma década na aviação comercial, ela voou com outra mulher como copilota. “Fizemos um discurso especial porque a tripulação era toda feminina. E, olha, agora posso garantir: não muda absolutamente nada no voo em termos técnicos”, diz.

De acordo com as pilotas, uma diferença entre a carreira para homens e mulheres é a questão da maternidade. “Quando a mulher descobre que está grávida, já não pode mais voar. A Anac cancela seu certificado de saúde porque fica perigoso ela sofrer um aborto por conta da pressurização”, diz Paula…

Compartir noticia:
ANUNCIOS
SÍGUENOS
Biblioteca Virtual